quinta-feira, julho 30, 2015

Sontag (sob o signo de Woolf)

SUSAN SONTAG
Olhando o Sofrimento dos Outros, de Susan Sontag, é um livro fascinante sobre as imagens e os seus contextos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 Julho), com o título 'Ser espectador segundo Susan Sontag'.

Susan Sontag (1933-2004) impôs-se na dinâmica do pensamento moderno através de um ensaio de 1966 intitulado Contra a Interpretação (existe uma tradução portuguesa, de 2004, com chancela da editora Gótica). O título envolve todo um programa cultural, mediático e político: há uma dimensão da linguagem que excede a “intelectualização” dos significados, abrindo para uma experiência que, na sua sensualidade, não pode ser formatada de uma vez por todas. Dito de outro modo: dizer o que as coisas significam é também respeitar o que nelas permanece como indizível.
Muita coisa mudou de 1966 para cá, mas a inteligência argumentativa de Sontag continua a ser um instrumento precioso que nos ajuda a pensar, a não ter medo de sentir. O derradeiro livro que publicou, Olhando o Sofrimento dos Outros (agora editado pela Quetzal, numa rigorosa tradução de José Lima), constitui um momento fascinante do seu trabalho, em especial pelo modo como discute a vida das imagens no mundo contemporâneo.
Sontag recua aos tempos primitivos das imagens fotográficas e, muito em particular, ao modo como a fotografia representou as guerras ocorridas há um século ou mais (incluindo, claro, o primeiro conflito mundial, essa “guerra para acabar com todas as guerras”). Daí a incontornável ambivalência: é verdade que a história das imagens (fotográficas, antes do mais) envolve um importante valor de testemunho; ao mesmo tempo, é preciso não alimentar demasiadas ilusões sobre as respectivas potencialidades pedagógicas. Evocando o livro Os Três Guinéus (1938), de Virginia Woolf, empenhado, justamente, em reflectir sobre uma conjuntura pejada de augúrios de guerra, Sontag formula um desencantado reconhecimento: “Durante muito tempo, houve pessoas que pensavam que se fosse possível dar uma imagem suficientemente vívida do horror, a maior parte das pessoas acabaria por tomar consciência da barbaridade, da insanidade da guerra”.
VIRGINIA WOOLF
O livro de Sontag não caminha no sentido de enunciar normas que, de uma vez por todas, nos garantam uma “boa” gestão da pluralidade de significações em que uma imagem pode estar envolvida — até porque há nela a consciência muito aguda de que vivemos sobre o efeito quotidiano, não poucas vezes pesadamente “moralizante”, do fluxo televisivo. Se há lição simples, mas essencial, que podemos condensar a partir das suas palavras é a da absoluta necessidade de pensar o contexto em que as imagens são conhecidas (ela evoca mesmo o modo como, no início das recentes guerras dos Balcãs, a “mesma fotografia de crianças mortas” serviu de arma de propaganda a diferentes facções).
Daí o continuado desafio de ser espectador, trabalhando a memória na sua dimensão eminentemente individual, resistindo à utilização das imagens reduzidas a ícones, funcionando como sound bites (por exemplo, um cartaz com o cogumelo de uma bomba atómica) e desencadeando “pensamentos e sentimentos previsíveis”. Diz ela: “Felizmente, não há nenhuma imagem ícone dos campos de morte nazis”.