terça-feira, outubro 14, 2014

Marianne Faithfull
50 anos depois de 'As Tears Go By'


Este texto, que evoca os 50 anos de carreira de Marianne Faithfull, foi originalmente publicado na edição de 27 de setembro do DN.

Há precisamente 50 anos uma então muito jovem Marianne Faithfull escutava, sentada num café, uma emissão de rádio, ouvindo o locutor a apresentar o seu primeiro single, As Tears Go By, editado poucos dias antes, descrevendo-o como uma canção escrita para si por Mick Jagger e Keith Richards... A mitologia assim fixou a história. Contudo, a canção que abriu uma carreira que agora assinala as bodas de ouro com a edição de Give My Love to London, um novo álbum de temas originais, nasceu de uma inesperada sucessão de (felizes) acasos.

A história começa alguns meses antes, numa festa em Londres que assinalava o lançamento de um disco de Adrienne Posta, uma jovem cantora cujo mais recente single fora produzido por Andrew Loog Oldham, o então manager dos Rolling Stones (que nesse ano tinham chegado pela primeira vez ao número um no Reino Unido com It’s All Over Now). Pela festa estavam figuras como Paul McCartney e alguns elementos dos Rolling Stones. Mas quem nela reparou foi Loog Oldham. “Ela sabe cantar?”, indagou a quem a acompanhava... E uma semana depois um telefonema chamava-a aos Olympic Studios onde Loog Oldham tinha preparado uma sessão de gravação para um eventual single que, estava previsto, seria um tema de Lionel Bart, o autor das canções do musical Oliver!. Não correu bem, ao que parece, e tentaram depois a canção que estava pensada para o lado B... Era um original de Mick Jagger e Keith Richards, que surgira numa tarde em que o manager os fechara numa sala dizendo que regressaria daí a duas horas e que, por essa altura, queria que lhe mostrassem uma canção... Jagger e Richards corresponderam ao pedido, apresentando-lhe um inédito a que chamaram As Time Goes By. Para evitar eventuais comparações com o clássico tema da banda sonora de Casablanca, Oldham mudou a letra para As Tears Go By e, tendo o tema em carteira, acabou por dá-lo a Marianne Faithfull, que o gravou com a voz cândida e inocente da rapariga de quase 18 anos que então era. A canção fez-se então, de facto, sua. E foi na mouche! Um êxito imediato no Reino Unido (onde chegou ao número nove), que a transformou numa personalidade da cultura pop. O romance com Mick Jagger, que fez correr tinta, só chegou depois.

Foi a própria Marianne Faithfull quem assim relatou o nascimento da canção que a revelou discograficamente. Uma entre as muitas revelações que fez, há precisamente 20 anos quando lançou Faithfull, uma autobiografia, onde arrumou de vez a curiosidade de tudo e todos sobre os muitos episódios do que eram então três décadas de carreira de uma vida que somou tantas histórias de canções como de escândalos, entre episódios com drogas, álcool e dias vividos na rua. Há alguns anos, ela mesmo me contou, por ocasião de uma visita a Portugal, que essa era uma das funções que esperava desse livro, libertando as entrevistas desde então para outros focos de curiosidade. Nessas mesmas páginas ela mesma reconhece que a sua voz em 1964 não era a ideal para uma canção com carga emocional e narrativa que a letra sugeria, apontando antes à versão que registou em 1987 no álbum Strange Weather como mais adequada ao que a canção exigira.

Coube contudo à leitura leve, com travo folk, do single editado em 1964 o papel de lançar uma carreira que fez desta descendente de um antigo companheiro de armas do imperador Carlos Magno uma figura admirada por várias gerações, um mais unânime reconhecimento crítico tendo contudo chegado apenas em finais dos anos 70 quando, depois de uma década feita de episódios conturbados e de discos quase invisíveis, se apresentou em 1979, de voz mais grave, profunda e intensa, em Broken English, disco que acompanhou com uma sucessão de telediscos realizados por Derek Jarman. O disco abriu uma nova etapa na sua carreira, que conheceria uma sucessão de lançamentos marcantes, entre os quais o histórico álbum ao vivo Blazing Away, em que recupera o pungente Sister Morphine, tema coescrito pela cantora, em parceria com Jagger e Richards e que originalmente tinha surgido num lado B em 1969 e que os Rolling Stones transformariam num clássico em 1971, na leitura apresentada no álbum Sticky Fingers.

O reconhecimento crítico, confirmado pelas sucessivas edições nos anos 80, abriu caminho a novas experiências nos anos 90, entre as quais colaborações com Angelo Badalamenti (célebre pela música que fez para muitos filmes de David Lynch) ou abordagens à memória de Brecht e Weil. O cinema, que já experimentara nos anos 60 e 70, voltaria depois a chamá-la, juntando papéis em filmes como Intimidade, de Patrice Chéreau, Marie Antoinette, de Sofia Coppola ou Irina Palm, de Sam Garbarski, onde foi a protagonista.

A chegada do século XXI tomou-a como ícone admirado por novas gerações de músicos, pelos seus discos mais recentes tendo surgido colaborações com nomes como Beck, PJ Harvey, Damon Albarn ou Nick Cave. Este último é um dos colaboradores no novo Give My Love to London, onde encontramos ainda o trabalho de Anna Calvi, Roger Waters, Ed Harcourt ou Adrian Utley (dos Portishead). O disco abre caminho para uma digressão na qual, aos 67 anos, Marianne Faithfull celebrará cinco décadas de atividade na música. A digressão, que arrancou a 11 de outubro em Estugarda (Alemanha) e passará, entre outras salas, pelo Olympia de Paris (20 de novembro) ou o Royal Festival Hall de Londres (29 de novembro), não tem ainda nenhuma data apontada a Portugal, o concerto mais próximo da nossa fronteira sendo, para já, o que visitará o Palau de la Musica Catalana, em Barcelona, a 9 de dezembro. Teremos a oportunidade de, com o nosso fôlego, ajudar a soprar as suas 50 velas?