sábado, setembro 13, 2014

Seguro + Costa: que televisão?

GERHARD RICHTER
Paisagem com nuvem
1969
Os debates entre António José Seguro e António Costa nascem das rotinas dominantes da ideologia televisiva, ao mesmo tempo que reflectem a ausência de pensamento político (nomeadamente na esquerda) sobre a própria televisão — esta crónica de televisão foi publicada na revista "Notícias TV", do Diário de Notícias (12 Setembro), com o título 'A cultura do PS'.

Há qualquer coisa de surreal no empolamento televisivo do combate de António José Seguro e António Costa pela liderança do Partido Socialista. E até mesmo a hipótese de um deles vir a ser primeiro-ministro de Portugal não passa de uma especulação que, por mais fundamentada, não justifica que, a partir dela, seja formatada toda a actualidade política.
Aliás, do ponto de vista estritamente político, temos estado a assistir a um deprimente processo de autoflagelação pública do PS (na TVI24, Henrique Monteiro falou mesmo, com toda a propriedade, de um hara-kiri do partido). No jogo que assim se encena, parece óbvio que o vencedor destas performances permanece, silencioso e casto, noutro cenário (chama-se Pedro Passos Coelho, como Fernando Esteves bem referiu na RTP Informação).
Que o imaginário televisivo viva desta agitação de coisa nenhuma, eis o que, infelizmente, parece ter-se tornado uma regra que poucos arriscam desafiar. Podemos mesmo perguntar: onde está alguém que ouse pensar as matrizes dominantes da informação e o seu efeito simbólico?
Onde está? Não está, sequer, naquela que seria a entidade de quem esperaríamos provas de alguma agilidade filosófica. A saber: o próprio PS. Que faz António José Seguro? Qual incauta personagem da reality TV, vai proclamando a sua comovente condição de vítima de todos os desmandos dos outros... E António Costa? Reúne os anciãos do partido para uma exposição televisiva que, por certo contra as suas melhores intenções, redobra os lugares-comuns de uma maneira esclerosada de encenar o trabalho político.
Em última instância, tudo isto significa que o PS, esquecendo que um genuíno pensamento cultural não pode ignorar as formas de fazer televisão, se acomodou ao pântano de ideias do statu quo televisivo. Não que a direita seja uma planície de conforto intelectual. Em todo o caso, ter as suas duas principais personagens a brincar aos debates sobre o futuro deste mundo e do outro, apenas confirma que a ideia de esquerda encalhou no conceito de talk show.