sexta-feira, agosto 22, 2014

Pepê Rapazote — a excepção e a regra

A notícia tem estado em todo o lado: no programa Verão Total (RTP1), ao apresentar um passatempo, o actor Pepê Rapazote sugeriu esta forma de utilização do dinheiro do prémio: "Para utilizar este dinheiro terá de utilizar um cartão multibanco. Mas pode comprar o que quiser! Se quiser comprar, por exemplo, droga! Desde que o seu dealer [traficante] tenha um terminal multibanco, pode comprar droga, já viu? Não é uma coisa maravilhosa? Estes mil euros vão dar-lhe muito jeito ao fim do dia. Mas não gaste tudo nestas coisas, nem em vinho. Tudo com moderação, tudo com moderação!" [transcrição de notícia e video do DN].
Como escreveu Nuno Azinheira, mesmo recusando os disparates que de imediato se multiplicaram nas "redes sociais", trata-se de uma "tremenda irresponsabilidade"; ou, como recorda Joel Neto, o facto concentra uma parte significativa do "paradigma" da televisão portuguesa de hoje.


Só posso sentir cumplicidade com tais pontos de vista. Apesar disso — aliás, corrijo: precisamente por causa disso —, creio que vale a pena extrapolar um pouco e enfrentar o mais incómodo dos factos: na sua monstruosa futilidade, a performance de Pepê Rapazote não emerge como a excepção, mas sim como o produto directo da regra. Que regra? A de que as práticas televisivas dispensam qualquer consideração pedagógica ou artística sobre o seu contexto e, nessa medida, qualquer pensamento sobre a relação que estabelecem com os espectadores.
Mais ainda: não é possível desligar tão patético episódio de todo um sistema de promoção social que, há muitos anos, se foi enraizando através do brutal reforço do poder simbólico (para não falar do económico) das telenovelas, depois prolongado pelo vergonhoso triunfo do Big Brother e seus derivados.
Que aconteceu, então? Muitos protagonistas de tais universos — e Pepê Rapazote é apenas uma das muitas dezenas de actores medíocres que são vendidos como o supra-sumo da arte de representar — são promovidos à condição de porta-vozes de "eventos" ou "dramas" sociais, não poucas vezes assumindo a condição de conselheiros encartados para todos os males que possam afectar os incautos espectadores, desde a gestão dos seus recursos financeiros até problemas de violência doméstica, passando pelo tratamento de queimaduras do sol durante as férias de Verão...
Pepê Rapazote é, de facto, apenas uma banal emanação da regra que, metodicamente, foi triunfando no espaço televisivo. Segundo tal regra, a mais absoluta irresponsabilidade serve-se com um sorriso grosseiro para, depois, se passar à frente e começar a inventar novo disparate.
Quem tem coragem — nomeadamente no interior dos nossos partidos políticos e das nossas instituições democráticas — para reconhecer que estamos perante um gravíssimo problema de esvaziamento dos valores sociais, logo de apocalíptica decomposição cultural?