quinta-feira, agosto 28, 2014

Manoel de Oliveira — um filme em Veneza

Luís Miguel Cintra (Camões), Diogo Dória (Teixeira de Pascoaes),
Ricardo Trêpa ('Dom Quixote') e Mário Barroso (Camilo Castelo Branco)
A apresentação de O Velho do Restelo, novo filme de Manoel de Oliveira, no Festival de Veneza é um acontecimento que merece ser sublinhado — este artigo surgiu integrado num dossier de apresentação da 71ª edição do certame, publicado no Diário de Notícias (26 Agosto).

Com a passagem de O Velho do Restelo no Festival de Veneza, pode dizer-se que Manoel de Oliveira regressa a uma casa que conhece bem — e onde há muito foi reconhecido como uma personalidade central na história do cinema. A sua primeira passagem pelo certame, em 1985, com O Sapato de Cetim, correspondeu mesmo a um momento decisivo na sua projecção internacional, quer pela ambição do projecto (a adaptação da peça homónima de Paul Claudel), quer pela própria internacionalização da respectiva produção (em especial através da relação com entidades francesas).
Depois disso, Oliveira surgiu mais seis vezes no festival, com A Divina Comédia (1991), Party (1996), Palavra e Utopia (2000), Porto da Minha Infância (2001), Um Filme Falado (2003) e Espelho Mágico (2005). Com eles conseguiu várias distinções, incluindo um prémio especial do júri para A Divina Comédia e o prémio da UNESCO para Porto da Minha Infância. Em 2004, esteve também em Veneza, nesse caso para receber a sua mais prestigiada distinção honorária: um Leão de Ouro pela carreira.
O Velho do Restelo é uma curta-metragem de apenas 20 minutos, mas não se pode dizer que a sua “brevidade” a coloque numa qualquer zona secundária da filmografia de Oliveira. Aliás, ao longo das décadas, podemos citar vários exemplos do seu trabalho — por exemplo, A Caça (1964) ou o sketch que dirigiu para o filme colectivo Cada um o seu Cinema (2007) — elucidativos da agilidade, e também do sentido experimental, com que o cineasta tem explorado os pequenos formatos.
Em cena estão nada mais nada menos que quatro vultos da história da cultura e, em particular, da literatura. Um deles é uma personagem de ficção: o Dom Quixote, de Cervantes; depois temos Luís de Camões e ainda os escritores Teixeira de Pascoaes e Camilo Castelo Branco. Até mesmo pelos actores que os interpretam — respectivamente, Ricardo Trêpa, Luís Miguel Cintra, Diogo Dória e Mário Barroso —, pode dizer-se que Oliveira se move na intimidade das questões mais fundas do seu universo narrativo, em última instância questionando a identidade de Portugal e o nosso dramático “ser ou não ser”. A referência ao “Velho do Restelo” decorre, afinal, de um cepticismo que vem desde a escrita camoniana.
O sentimento intimista apresenta-se, de alguma maneira, multiplicado pelas próprias referências que Oliveira convoca, integrando fragmentos de outros filmes. A produção soviética Dom Quixote (1957), de Grigori Kozintsev, é uma dessas referências, mas as citações são, no essencial, do próprio universo de Oliveira, nomeadamente de dois títulos onde ecoavam as mesmas interrogações e perplexidades: Non ou Vão Glória de Mandar (1990) e O Dia do Desespero (1992).
O Velho do Restelo integra a selecção oficial de Veneza, numa zona extra-competição em que Oliveira estará na companhia de nomes como o americano Peter Bogdanovich (She’s Funny That Way), o israelita Amos Gitai (Tsili) e o dinamarquês Lars von Trier (de quem será apresentado o “director’s cut” de Ninfomaníaca, Vols. I e II).