quarta-feira, agosto 20, 2014

Em conversa: Michael Cunningham (2014.3)

Continuamos a publicação de uma entrevista com o escritor Michael Cunningham feita a propósito da edição em Portugal do seu mais recente romance, A Rainha da Neve. A entrevista foi originalmente publicada nas páginas do suplemento Q,. do DN.

Não é também a primeira vez que escreve sobre alguém que busca a perfeição. Que tenta fazer algo bem feito (como aqui sucede com Tyler, que quer fazer a canção certa)... A Laura n’As Horas queria cozinhar o bolo perfeito...
É verdade. Bem observado. Quem escreve romances está fixado em coisas diferentes. Quando comecei a escrever não me decidi a escrever sistematicamente sobre o desejo humano em criar algo maior que a média dos seres humanos. Mas é uma das coisas mais interessantes sobre a espécie humana. O desejo de criar algo belo e duradoiro. Se um extraterrestre aparecesse pela minha frente e me pedisse para descrever os seres humanos em poucas palavras, uma das coisas que eu responderia era que somos seres que querem produzir o belo, querem produzir trabalhos que transcendam os nossos próprios limites. É parte do que é interessante em nós mesmos.

Mas há também o revés da medalha... No novo livro lembra que, no Iraque, afinal, não havia armas de destruição maciça...
Por cada pessoa que tenta criar uma obra de arte há algum chefe corporativo a envenenar o ambiente ou a procurar o lucro... Mas isso eu não diria ao extra-terrestre [risos].

Quão exigente é consigo mesmo quando escreve? É como a personagem Tyler, que luta pela canção certa?
Sou muito exigente comigo mesmo, como acho que qualquer escritor deve ser. Escrevo e depois reescrevo e volto a reescrever. Sou talvez menos nervoso que o Tyler. Se um parágrafo não serve sei que mais tarde o posso mudar. O que é uma qualidade útil para qualquer artista. O Tyler é como aquelas pessoas dotadas, mas que não conseguem terminar nada, porque nunca nada chega ao patamar das suas expectativas. Eu sei que não chego ao nível das minhas expectativas, mas faço as coisas à mesma.

Algum dos seus livros se aproximou desse nível de exigência pessoal?
Não quero insultar os meus próprios livros. Creio que temos sempre um bom livro em mente. Deveríamos ter. Deveríamos sempre sentir que o livro que escrevemos não é tão bom como o livro que tínhamos em mente. Se deixarmos de sentir assim e ficarmos muito satisfeitos, então acabamos mal.

Nos últimos livros tem aprofundado a escrita de diálogos. Ouve-lhes os sons das vozes? Imagina-os a falar?
Escuto as vozes das pessoas, sim, e isso é muito espontâneo. Sei como as personagens falam... Sei como é o ritmo das suas frases, as palavras que tendem a repetir... É uma das coisas que chega, mas não sei de onde vem.

As personagens nascem antes da história ou é a evolução da narrativa que acaba por defini-las melhor?
É um pouco das duas coisas. Tenho um sentido claro das personagens no primeiro rascunho (que é sempre muito diferente do livro que é depois publicado). Mas ao escrever sobre estas pessoas vamos descobrindo melhor quem elas são. Vamos descobrindo as suas contradições... E depois faz-se um segundo rascunho que estabelece melhor quem são, o que mexe com elas... O que as assusta. Um dos objetivos do romancista é o de produzir personagens verosímeis. Sem personagens complexas e nas quais se acredite um romance não pode ser bom.

Visualiza estas personagens? E o que acontece, depois, quando é confrontado com filmes que usam atores para lhes vestirem a pele?
É um processo um pouco estranho. Mas tenho tido sorte com os atores que têm recriado as personagens que inventei. Não sei se acredito na reincarnação... Mas imaginemos que a reincarnação existe, pelo menos para servir esta discussão. Ver atores a interpretar personagens é um pouco como ter conhecido alguém intimamente. Essa pessoa que amamos morreu e surge reincarnada... Conhecemos então uma nova pessoa. É um novo corpo (é outra pessoa). Mas entendemos que aquele é o nosso velho amor reincarnado. 

Este é um livro que acontece na Nova Iorque dos nossos dias. É uma história que acontece depois do 11 de Setembro. Não se fala sequer do 11 de Setembro... Mas há algo que ali ficou. É como se tivesse ficado inscrito implicitamente na cidade e em quem nela vive...
Sim, o 11 de Setembro está lá. Teve um efeito profundo no sentido de segurança dos americanos, no seu sentido do futuro. Tornou-se parte de como pensamos e sentimos. Está lá implicitamente.

A arte em finais do século XX e inícios do século XXI – e sobretudo a arte criada em Nova Iorque – retratou de diversas formas a epidemia da sida. Sente que As Horas faz parte de um corpo de obras que, tal como por exemplo a Sinfonia n.º 1 de John Corrigliano, expressam dessa forma uma atenção com marcas de contemporaneidade?
Na altura era impossível não falar do tema. Foi importante escrever e ainda é um tema importante. A epidemia não acabou. Veja-se África. Veja-se o que acontece entre americanos consumidores de certo tipo de drogas... Mas hoje sinto que essa já não é a história para eu contar. Segui em frente. Não ia escrever romances sobre doentes com sida a vida toda. Mas não diria nunca que o mundo resolveu a epidemia.