sexta-feira, agosto 22, 2014

Em busca de uma canção

Depois da publicação de uma entrevista com o escritor Michael Cunningham feita a propósito da edição em Portugal do seu mais recente romance, A Rainha da Neve e que foi originalmente publicada nas páginas do suplemento Q,. do DN, apresentamos hoje o livro e o autor. Este é também um excerto desse texto.

Estamos numa manhã de novembro de 2004 na cozinha de um pequeno apartamento na Knickerbocker Avenue, em Brooklyn (Nova Iorque). Tyler, um dos protagonistas desta história, tenta afastar um pensamento da sua mente: “Não vão reeleger George Bush. Não podem reeleger George Bush”... E depois recentra as atenções numa canção que está a escrever. Uma canção que “devia manter-se muito próxima de Dylan e dos Velvet Underground. Não devia ser um faux-Dylan, nem uma imitação de Lou Reed; devia ser original (original, naturalmente; de preferência sem precedentes; preferencialmente tingida de génio), mas isso ajuda, ajuda um pouco a apontar numa certa direção”. Trabalha na letra, na música... Canta, à espera de que os primeiros versos “vão dar a... qualquer coisa”, numa cozinha entre fotografias de Burroughs, Bowie, Dylan, Faulkner e Flannery O’Connor (estas últimas escolhidas por Beth, com quem vive).
Pouco depois Barrett, o seu irmão (que também partilha o espaço daquele apartamento), veste umas calças justas e uma T-shirt dos Clash puída. Prepara-se para sair para o trabalho numa loja onde vende jeans, T-shirts e acessórios. “O que me preocupa deveras é o corte de cabelo do Kerry”, tinha respondido na véspera ao irmão, confrontados os dois com sondagens que davam Bush com vantagem sobre o candidato democrata.

E é com as vésperas da eleição presidencial de 2004 (que acabaria por dar um segundo mandato a George W. Bush) e uma primeira mão-cheia de referências musicais que entramos n’A Rainha da Neve, novo romance de Michael Cunningham, escritor norte-americano que, depois do sucesso de As Horas – uma narrativa em três épocas que toma o livro Mrs. Dalloway de Virigina Woolf como principal fonte de inspiração –, no final dos anos 90, se tornou presença habitual nos escaparates das livrarias a cada novo título que publica.

A sua carreira começou há 30 anos, com o único dos seus romances que nunca conheceu reedição. Trata-se de Golden States, lançado em 1984 e que o escritor explicou já ter sido um exercício feito para provar a si mesmo que conseguiria terminar um romance. O reconhecimento estava ainda longe. E em 2011, por ocasião de um lançamento de um outro romance seu em Lisboa, ele mesmo explicaria então como foi longo o período de silêncio que antecedeu as atenções que chegariam à sua escrita em finais dos noventas: “Passei os meus vinte anos à procura do amor e outras drogas. E só quando cheguei aos 30 é que pensei que tinha de ter uma carreira. E depois demorou seis ou sete anos até alguém publicar alguma coisa minha. Não sou apenas disciplinado. Sou muito autoconfiante e muitas vezes pensava ‘que se lixem’ por não publicarem o que escrevia. Em meados dos meus 30 anos pensei que se calhar não aconteceria, que poderia ser uma dessas pessoas que nunca chega a ser escritor. Decidi que ia continuar a escrever, mesmo que me tornasse um professor ou algo parecido. E pouco depois, quando decidi que não me ia preocupar, a New Yorker publicou um conto meu e a partir daí as coisas seguiram”, como ele mesmo explicou na altura.

E foi assim que chegamos a livros como Uma Casa no Fim do Mundo (1990, que teria depois adaptação ao cinema em 2004 por Michael Mayer e com argumento adaptado pelo próprio escritor) e Sangue do Meu Sangue (1995), romances que também antecederam a publicação de As Horas (1998), o título com o qual Michael Cunningham venceu vários prémios – entre os quais um Pulitzer – e conheceu a sua primeira tradução para o mercado livreiro português.
De então para cá, e antes do novo A Rainha da Neve, lançou os romances Dias Exemplares (2005) e Ao Cair da Noite (2011), a sua bibliografia tendo entretanto somado ainda a presença de Land’s End: A Walk in Provincetown, um pequeno livro sobre a cidade onde costuma passar os dias de verão e que não conheceu ainda tradução. Um retrato do seu trabalho recente não pode esquecer trabalhos para o cinema, introduções e prefácios para livros (entre os quais reedições de textos de Virginia Woolf, Thomas Mann ou Walt Whitman) e alguns contos já publicados, além de um lugar como professor de escrita criativa na Universidade de Yale.

Uma certa disciplina rege o seu dia-a-dia, no qual a escrita surge devidamente arrumada. “Se há algo que eu, ao longo dos anos, aprendi foi a tornar-me menos obsessivo no meu método de escrita”, contava em 2011 perante uma plateia de leitores seus em Lisboa. “Acordo, vou para o meu estúdio e escrevo durante umas quatro ou cinco horas. E depois vou tratar da minha vida e não escrevo frases em guardanapos nem vou a festas a pensar que isto seria bom para um romance. Acho que preciso ir direto do sono e sonhos para escrever”, acrescentou nessa mesma ocasião. E agora, ao mesmo tempo que nos chega A Rainha da Neve, Michael Cunningham termina a escrita de um episódio-piloto para uma série de televisão e revê o argumento para uma adaptação ao cinema de um romance de Ann Leary.