quinta-feira, agosto 21, 2014

Cinema & poesia

O filme colectivo Tar é um objecto comercialmente pouco protegido e, ao mesmo tempo, pleno de energia e lições a ter em conta — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 Agosto), com o título 'Bruscamente no Verão de 2014'.

Há qualquer coisa de profundamente redutor na imagem dominante dos jovens sustentada pelo mercado cinematográfico (tendo como principal aliado, há que reconhecê-lo, o populismo “juvenil” de muitas formas de fazer televisão). Por um lado, circula a ideia simplista segundo a qual “super-heróis” e “efeitos especiais” constituem os únicos valores a ter em conta na relação informativa e comercial com os jovens; por outro lado, o chamado jovem adulto é muitas vezes implicitamente caracterizado como um pateta alegre cujos interesses se esgotam na má língua das famosas “redes sociais” ou no mais recente gadget a aplicar no seu telemóvel...
Vem este desabafo a propósito da estreia de um filme como Tar, inspirado na poesia de C. K. Williams, autor americano distinguido com um Pulitzer no ano 2000 (Tar é também o título de um dos seus livros). De facto, num contexto cultural e comercial que tivesse uma visão mais ágil dos seus públicos, Tar seria um objecto especialmente trabalhado para mobilizar o interesse de qualquer espectador jovem ou adolescente. Porquê? Pela mais motivadora das razões: trata-se de uma obra colectiva, assinada por doze estudantes da Universidade de Nova Iorque.
Não se trataria, entenda-se, de enaltecer de forma abstracta a “juventude”. Acontece que Tar constitui um exemplo interessantíssimo de uma aliança pouco comum (mesmo no contexto americano) entre as instâncias de ensino e as estruturas de produção cinematográfica. Na prática, os estudantes novaiorquinos puderam mesmo contar com a disponibilidade de alguns actores da “lista A” de Hollywood, incluindo James Franco (também co-produtor) Mila Kunis e Jessica Chastain.
O resultado de tal conjugação de esforços e talentos exibe marcas de uma óbvia influência de Terrence Malick e, muito em particular, de A Árvore da Vida (2011). Seja como for, creio que será importante dizer que a energia contagiante de Tar não resulta, longe disso, de um mero catálogo de inspirações. Através de um estrutura fragmentada e fragmentária, este é um filme sobre o poder visceral das palavras.
E não será verdade que, no fascinante património de Hollywood, existe toda uma nobre tradição ligada a esse poder? Será preciso recordar títulos como Bruscamente no Verão Passado (1959), de Joseph L. Mankiewicz [cartaz pequeno], e a sua delicada arte de exposição da transparência e das máscaras que as palavras podem envolver?
Enfim, importa não simplificar: Tar não está, de facto, ao nível de Mankiewicz... Mas não é isso que está em jogo. O que deve ser sublinhado e valorizado é o facto de este ser um filme tocado por uma vitalidade que, ao atender à densidade da escrita poética, celebra o cinema muito para além dos lugares-comuns tecnológicos que, hoje em dia, enquadram muitos aspectos do seu consumo. Que isso envolva também uma visão mais digna da própria juventude, eis o que não me parece secundário.