quinta-feira, julho 24, 2014

Locke, Violette, Omar e Ida

Agata Trzebuchowska, IDA
Quando é que uma personagem fala na primeira pessoa? Ou melhor: num filme, o que significa falar na primeira pessoa? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 Julho), com o título 'Histórias na primeira pessoa'.

Vale a pena referir que, no espaço de poucas semanas, foram lançados nas salas portuguesas quatro filmes interessantíssimos, de origens bem diversas, que, para além das suas diferenças temáticas e estéticas, partilham um princípio de identificação: os seus títulos fazem-se com o nome da personagem central.
Assim, Locke (Steven Knight, Grã-Bretanha) desenha o retrato, “em directo”, de um homem que vê desmoronar-se a sua vida conjugal e profissional; Violette (Martin Provost, França) evoca as atribulações emocionais e literárias da escritora Violette Leduc; Omar (Hany Abu-Assad, Palestina) encena a aliança trágica de um jovem palestiniano e um elemento dos serviços secretos israelitas; enfim, Ida (Pawel Pawlikowski) revisita, a partir dos anos 60, as memórias cruéis de uma família de judeus durante a Segunda Guerra Mundial.
Dir-se-ia que o cinema resiste, assim, a qualquer efeito normativo de tratamento das personagens, impedindo-as de se dissiparem em “símbolos” mais ou menos universais que, não poucas vezes, tendem a escamotear as singularidades das histórias individuais. O que, assim, se joga é algo que o imaginário televisivo tende a recalcar, mascarando o labor específico de qualquer linguagem narrativa enquanto linguagem de (e para) uma determinada visão do mundo.
Curiosamente, outro filme recente — Na Terceira Pessoa, de Paul Haggis — desenvolve-se a partir do próprio jogo de espelhos, ambíguo, potencialmente infinito, entre a criação de uma personagem e o modo como nela, e através dela, se exprime a vontade (ou a resistência) do seu criador. O título alude, justamente, ao facto de um escritor, ao escrever histórias “na terceira pessoa”, estar sempre a relançar a presença mais ou menos detectável, mais ou menos consciente, do seu “eu”.
O caso do filme Ida envolve uma perturbação muito particular. Através da sua personagem, interpretada pela magnífica Agata Trzebuchowska, o realizador expõe a memória da aniquilação dos judeus pela máquina de guerra nazi a partir de uma história tão minimalista que, em boa verdade, nem a sua protagonista sabe situar. Em sentido literal: Ida é aquela que quer saber como é que os seus pais foram mortos e, mais do que isso, onde estão as respectivas sepulturas.
O filme de Pawlikowski ilustra uma tendência transversal a várias cinematografias: trata-se de continuar a contar histórias da Segunda Guerra Mundial, mas à margem das matrizes do tradicional “filme de guerra” (outro exemplo será Lore, também um título/personagem, produção de 2012 dirigida pela australiana Cate Shortland). Que tal aconteça através de imagens a preto e branco, eis o que talvez possa ser interpretado como uma dupla prova de resistência: por um lado, importa recusar as facilidades do “naturalismo” mediático do nosso presente; por outro lado, procura-se um realismo seco e primitivo, fiel a uma sensibilidade clássica.