domingo, julho 27, 2014

1981-1984: memórias da sida

Um grande filme, sem dúvida um telefilme, marca a actualidade da televisão em Portugal: Um Coração Normal, de Ryan Murphy, revisita os anos dramáticas de descoberta da epidemia da sida — esta crónica de televisão foi publicada na "Notícias TV", do Diário de Notícias (25 Julho), com o título 'Outras memórias da sida'.

Será que as televisões generalistas perderam a capacidade de criar genuínos acontecimentos sociais a partir da ficção... televisiva? Não há, por certo, uma resposta global e definitiva, mas é um facto que algumas das mais importantes produções televisivas dos nossos dias tendem a ser relegadas para horários noctívagos ou, então, apenas surgem nos canais de cabo. Um Coração Normal, de Ryan Murphy, aí está como um significativo exemplo desses desequilíbrios — o filme estreou no TVCine e não será exagerado considerar que se trata, desde já, de um dos acontecimentos maiores do ano televisivo.
É um objecto de televisão, de facto. Tem chancela da HBO e, no seu elenco, conta com nomes tão conhecidos como Mark Ruffalo (nomeado para um Oscar, em 2011, por Os Miúdos Estão Bem), Taylor Kitsch (protagonista de John Carter, superprodução dos estúdios Disney, que já trabalhou sob a direcção de Oliver Stone, em Selvagens) e Julia Roberts. O realizador está ligado à criação de séries tão populares como Nip/Tuck e Glee. Além do mais, um dos produtores dá pelo nome de Brad Pitt, já que a sua empresa Plan B está também envolvida no projecto.
Larry Kramer
Estamos perante a adaptação da peça homónima de Larry Kramer estreada em 1985 (título original: The Normal Heart), por certo um dos textos mais radicais, e também mais representados em palcos de todo o mundo, sobre os primeiros anos da sida. Mais concretamente, a acção situa-se em Nova Iorque, entre 1981 e 1984, e centra-se na personagem de Ned Weeks (Ruffalo), escritor e activista homossexual com um papel determinante na militância para a criação de condições — científicas, sociais e morais — para enfrentar a doença.
São memórias contundentes e desencantadas, cujas ressonâncias autobiográficas o próprio Kramer é o primeiro a reconhecer. Trata-se, sobretudo, de uma visão que dispensa qualquer paternalismo ou piedade, colocando em jogo a vergonhosa indiferença dos poderes políticos, tanto quanto a discussão das contradições ideológicas no interior da comunidade gay. Não é todos os dias que a televisão consegue ser tão rica de ideias e emoções.

>>> Produzido a pretexto do lançamento de Um Coração Normal,  este video da MSNBC, datado de 23 de Maio, inclui um precioso documento: uma entrevista televisiva de Larry Kramer, em 1983.