quinta-feira, dezembro 01, 2011

Uma conversa com David Cronenberg (1/3)

Em Um Método Perigoso, o canadiano David Cronenberg coloca em cena um especialíssimo trio: Sigmund Freud (Viggo Mortensen), Carl Jung (Michael Fassbender), ambos envolvidos nos primórdios da psicanálise, e Sabina Spielrein (Keira Knightley), uma das sua primeiras pacientes. A conversa que aqui se reproduz, realizada a 6 de Novembro, durante o Estoril & Lisbon Film Festival, teve Um Método Perigoso como pretexto imediato, acabando por desembocar em Cosmopolis, filme com Robert Pattinson, baseado no romance de Don DeLillo, actualmente em fase de montagem — esta transcrição, em bruto, serviu de base a uma entrevista publicada no Diário de Notícias (29 de Novembro), com o título 'David Cronenberg no labirinto da psicanálise'.
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Qual é a origem de produção de Um Método Perigoso? Não é um filme totalmente canadiano?
É uma coprodução entre Canadá e Alemanha. Ironicamente, isso fez com que o filme tivesse sido quase por inteiro rodado na Alemanha, mesmo se a sua história não se passa nesse país. Há uma razão, de produção precisamente, para que isso aconteça: quando se faz um acordo deste género, é preciso gastar o dinheiro em ambos os países. Neste caso, filmámos em Colónia e na zona do Lago Constança. Além do mais, quis filmar em locais nos quais sabemos que Freud viveu, ou por onde passou.
Este filme terá sido, talvez, um reencontro com a psicanálise. Não sente que a sua obra anterior está já muito marcada por Freud e pelas referências psicanalíticas?
Não de forma tão específica. No fundo, creio que a psicanálise e a arte fazem a mesma coisa. Digamos que somos confrontados com a versão oficial da realidade: o paciente chega ao consultório e conta que tem uma profissão, uma família, a sua mulher... E aí, a psicanálise diz: “Certo, mas o que é que está realmente a acontecer? Como é que conseguimos chegar a essas coisas que não são ditas, que fazem com que a sua vida vá num determinado sentido e não noutro?” O artista faz o mesmo com a sociedade: avança para além da superfície das coisas, tenta ver o que está realmente a acontecer. O que está escondido? O que não é compreendido? O que não é dito?
Essa proximidade entre psicanálise e arte sempre funcionou assim?
Alguns artistas que criticaram Freud (o escritor Vladimir Nabokov, por exemplo), fizeram-no por pensarem que Freud considerava que, nesse aspecto, a arte era inferior à psicanálise, uma espécie de versão grosseira daquilo que a psicanálise realmente faz... Ora, não creio que essa fosse, realmente, a perspectiva de Freud. Basta ver os objectos que ele tinha no seu gabinete de trabalho: ele era alguém que via a arte e a cultura de muitos milhares de anos como importantíssimas para compreender a condição humana.
Para Freud, o modo como obtemos prazer foi sempre um tema central. E é muito curioso observar, no seu filme, como o prazer de Freud é figurado através dos seus charutos.
Quando faço um filme, não procuro uma abordagem conceptual. Aquilo que um crítico possa fazer, explorando conceitos e relacionando os filmes uns com os outros, não é aquilo que eu faço. A minha abordagem é outra. E nesse aspecto posso dizer que é verdade que, na preparação com Viggo Mortensen, troquei com ele uns trinta mails sobre... charutos!
E qual era o assunto desses mails?
Por exemplo, quantos charutos Freud fumava por dia? Pois bem, fumava vinte e dois. Na verdade, tinha sempre um charuto na mão. O que nos levou a decidir: no filme, ele vai ter sempre um charuto na mão. Aliás, mesmo quando soube que tinha cancro no maxilar por causa do seu hábito de fumar, Freud não deixou de fumar: para ele, os charutos eram uma “matéria do trabalho”, não conseguia pensar ou trabalhar sem estar a fumar. Ao fazer um filme, isso não é uma matéria conceptual, mas sim humana. Em todo o caso, sobre o princípio do prazer, é preciso lembrar também que ele escreveu um livro chamado Para Além do Princípio do Prazer. E isso foi claramente influenciado por Sabina Spielrein, já que foi ela que introduziu a ideia de uma pulsão de morte. Ou seja: se o sexo é prazer, porque é que o reprimimos? O que faz com que, socialmente, essa repressão aconteça? É dela que vem a sugestão de uma relação entre sexo e morte, sexo e a anulação do “eu”.

[continua]