sábado, agosto 30, 2025

Eddie Murphy já não mora aqui...

Eddie Murphy e Pete Davidson: saudades da comédia...

Como actor e produtor, Eddie Murphy continua a gerir a sua carreira através de sucessivas cópias de personagens que já assumiu ou situações que já protagonizou: infelizmente, The Pickup (Prime Video) é mais um exemplo dessa deriva profissional.

Há filmes a que, por razões óbvias, o título original basta como identificação — ninguém esperava que Titanic fosse lançado como “A saga do paquete que foi ao fundo”. Ainda assim, há uma lição bizarra que o espectador atento às convulsões do mercado foi aprendendo ao longo dos anos: quando um filme é lançado apenas com o título original (sem sequer se usar a hipótese de um subtítulo português), é mais que provável que quem o distribui não tenha qualquer empenho, muito menos crença, na sua valorização... Assim acontece com The Pickup, uma realização de Tim Story (responsável pela versão de Shaft, com Samuel L. Jackson, estreada em 2019), disponível na Prime Video, sem ter passado pelas salas.
Infelizmente, reencontramos um sintoma do esgotamento de fórmulas e formatações em que se transformou a actividade de Eddie Murphy, brilhante figura do “stand-up” norte-americano e, na década de 80, actor de várias comédias de contagiante sofisticação — a começar, claro, por 48 Horas (1982), de Walter Hill —, aqui, uma vez mais, na dupla condição de actor e produtor. Aliás, na melhor das hipóteses, The Pickup poderá ser encarado como uma tentativa de reactivar o modelo da dupla burlesca que Murphy construiu na companhia de Nick Nolte em 48 Horas e 48 Horas – Parte II (1990), sempre sob a direcção de Hill.
Neste caso, a dupla é constituída por dois empregados de uma firma de transportes especializada em entregas (nomeadamente de dinheiro) que exigem medidas de alta segurança. Russell, a personagem interpretada por Murphy, é um veterano que sai de manhã para o trabalho, prometendo a sua mulher Natalie (Eva Longoria) que, desta vez, não faltará aos seus deveres conjugais, ou seja, o jantar de celebração dos 25 anos do casal. Nesse mesmo dia, Russell acolhe, com evidente má vontade, um novo companheiro de trabalho, Travis (Pete Davidson), especialista em criar confusões mais ou menos comprometedoras...
O modelo é conhecido e convenhamos que todos os seus lugares-comuns se vão cumprindo com duvidosa eficácia, ainda que as personagens femininas — além de Natalie, há também Zoe (Keke Palmer), uma figura susceptível de confundir a moralidade de tudo o que está a acontecer — contribuam, pelo menos, para baralhar um pouco os dados iniciais.
Seja como for, a execução geral de The Pickup reflecte uma lógica cada vez mais influente (e, a meu ver, negativista) em zonas da produção de Hollywood instaladas na repetição de regras que poucos arriscam repensar e reinventar. Ironicamente, as entidades produtoras — Davis Entertainment, Eddie Murphy Productions e The Story Company (fundada pelo realizador) — não deixam de ser símbolos daquilo que é, ou poderia ser, uma produção genuinamente independente.

Highway 61 Revisited — Bob Dylan há 60 anos

Highway 61 Revisited, sexto álbum de estúdio de Bob Dylan, foi lançado no dia 30 de agosto de 1965 — faz hoje 60 anos.
Para assinalar a data, o marketing de Dylan, criativo como poucos, propõe várias alternativas de (re)descoberta desse registo que abre com o lendário Like a Rolling Stone, incluindo uma "auto-estrada interactiva" [imagens em cima].
Numa dimensão mais tradicional, destaquemos a proposta disponível no Music-YouTube: um pouco mais de três horas e meia com 43 canções — uma antologia (breve, apesar de tudo) para quem chegou agora de outra galáxia e tem alguma curiosidade em conhecer o génio de Robert Allen Zimmerman, nascido a 24 de maio de 1941.
Eis um exemplo, com imagens: Shelter from the Storm, num registo incluído em Hard Rain (1976), álbum ao vivo gravado durante dois concertos da digressão 'Rolling Thunder Revue'.

sexta-feira, agosto 29, 2025

David Bowie e Mick Jagger, agora em 4K

Dancing in the Street, tema emblemático de Martha and the Vandellas, em 1964, foi um dos símbolos do Live Aid, há 40 anos (13 julho 1985), na interpretração de uma dupla genial: David Bowie/Mick Jagger. A sua performance surgiu nos ecrãs dos estádios de Londres e Filadélfia que acolheram o concerto, num teledisco assinado por David Mallet. Agora num primoroso restauro em 4K, surgiu também numa versão "complementar", um pouco à maneira de um clássico making of — eis as duas versões.
 

Guitarra & Voz [9/10]

MADONNA
Don't Tell Me

Tema emblemático do álbum Music (2000), foi a principal matéria de trabalho de Madonna quando aprendeu a tocar guitarra com o seu professor (e acompanhante de longa data) Monte Pittman. Em boa verdade, esta é uma performance com duas guitarras, já que Pittman também está presente — aconteceu em The Late Show, de David Letterman, a 3 de novembro de 2000.


[ Ryan Adams ] [ David Fonseca ] [ Bruce Springsteen ] [ Joni Mitchell ] [ Eddie Vedder ]
[ Bob Dylan ] [ Mauro Passos ] [ Keb' Mo' ]

Escutando Bach (com Rick Beato)

[Gramophone]

Gottes Zeit ist die allerbeste Zeit ['O tempo de Deus é o melhor dos tempos'], BWV 106, é uma cantata de Bach, composta em 1707-08, de que existem diversas versões, incluindo para piano a quatro mãos. Num dos seus videos mais breves, mas também mais eloquentes, Rick Beato propõe uma breve digressão sobre os nossos modos de (des)conhecimento da música. Em boa verdade, como ele próprio reconhece, fá-lo sobretudo para poder partilhar a cantata — vale a pena seguir a sua cristalina exposição e, claro, escutar silenciosamente os prodígios de Bach.

quinta-feira, agosto 28, 2025

Celebrando a herança televisiva de Ed Sullivan

Ed Sullivan com as Supremes: a televisão no seu melhor

Entre 1948 e 1971, Ed Sullivan foi uma figura nuclear da televisão dos EUA, acolhendo no seu programa muitos nomes da música negra. Através de uma exemplar recolha de materiais de arquivo, Ed Sullivan: Domingos de Excelência (Netflix) celebra os valores do seu trabalho — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 agosto).

Onde se realiza o programa de Stephen Colbert (The Late Show) que admiramos pelo seu sentido de espectáculo e também pela capacidade de desmontar os prós e contras da cena política dos EUA, incluindo, claro, as atribulações da era Donald Trump? As respectivas gravações são feitas no Teatro Ed Sullivan, sala lendária de Nova Iorque.
E porque é que, justamente, o nome de Ed Sullivan (1901-1974) ficou como uma referência mítica nos anais da televisão dos EUA? Por causa de um acontecimento excepcional que mudou a história da música e de toda a cultura popular. Ou seja: a 9 de fevereiro de 1964, o programa The Ed Sullivan Show (nesse mesmo teatro que era, então, o estúdio 50 da CBS) acolheu uma banda que era já um fenómeno na Europa, embora mal conhecida pelos americanos, de seu nome The Beatles!
Pois bem, se tais memórias nos bastam para resumir a herança televisiva de Ed Sullivan, é altura de parar para vermos Ed Sullivan: Domingos de Excelência, um dos melhores documentários actualmente nas plataformas de streaming (Netflix, neste caso). No original Sunday Best, trata-se do derradeiro trabalho de Sacha Jenkins, jornalista e produtor/realizador da televisão americana, falecido este ano, a 23 de maio, aos 53 anos, atingido por uma doença neurodegenerativa — o filme é dedicado à sua memória.
Não se trata, entenda-se, de dar a conhecer algo que estivesse escondido ou, de alguma maneira, contaminado por informações pouco fiáveis. A esse propósito, o cartaz de Ed Sullivan: Domingos de Excelência cita uma frase que vale a pena reproduzir: “Nos primeiros tempos da televisão, quando as regras ainda estavam a ser escritas, um homem atreveu-se a desafiá-las.” Que desafio foi esse? O de conceber o seu programa como uma plataforma aberta à música negra.
Convém lembrar que The Ed Sullivan Show existiu ao longo de 24 temporadas, entre 20 de junho de 1948 e 28 de março de 1971, com um total de 1068 episódios. Assim, o programa foi emitido num período de muitas convulsões sociais e políticas, desde a luta pela igualdade de direitos civis, com líderes como Martin Luther King, até ao envolvimento militar dos EUA no Vietname, passando pelos anos de esperança e tragédia da presidência de John F. Kennedy.
Ao longo desses anos, muito antes da chegada dos Beatles aos EUA, Ed Sullivan franqueou as portas (ou melhor, os ecrãs) a nomes como Ray Charles, James Brown, Ike & Tina Turner, Harry Belafonte, Nina Simone, Stevie Wonder (na sua primeira parição em televisão, contava 13 anos! > video), os Jackson Five ou The Supremes. Sem esquecer, claro, momentos igualmente lendários como a estreia de Elvis Presley no programa, a 9 de setembro de 1956. Dito de outro modo: a abertura de Ed Sullivan à música afro-americana (não poucas vezes resistindo às pressões dos poderes mais conservadores, em particular durante as perseguições do “maccartismo”) decorria, afinal, de uma notável disponibilidade para acolher os ventos de transformação cultural que a América e o mundo estavam a viver.
Os resultados do documentário são tanto mais admiráveis quanto a quantidade e a diversidade de materiais de arquivo é, de facto, fascinante — além de exemplar em termos jornalísticos.
Este não é um trabalho que se limite a acumular esses materiais, “ligando-os” por uma voz off banalmente descritiva, desatenta às especificidades das imagens e dos sons. Nesta perspectiva, Ed Sullivan: Domingos de Excelência envolve também uma invulgar lição de montagem. Com frequência, as performances no estúdio surgem em paralelo com acontecimentos sociais que esclarecem os laços entre “entertainment” e política. Ou como disse o próprio Ed Sullivan: “Estas actuações, sempre fantásticas, tornam-se melhores na televisão porque, ao contrário de um grande teatro, todos têm lugar na primeira fila.”

segunda-feira, agosto 25, 2025

Laufey, Opus 3

Dois anos depois de Bewitched, a islandesa Laufey [lói-vei] está de volta com A Matter of Time, terceiro álbum de estúdio de uma curta mas brilhante discografia. As componentes jazzísticas voltam a enredar-se com os suaves sobressaltos de um envolvente romantismo — eis um belo exemplo, com um título que reforça todo um programa estético que já está pressentido no nome do próprio álbum: Seems Like Old Times.

sexta-feira, agosto 22, 2025

Patti Smith, Snowball

Disco do ano? Disco do ano de 2025? Ou disco do ano de 1975?
Tanto faz... Patti Smith acaba de anunciar uma edição comemorativa dos 50 anos de Horses (10 outubro), sendo, por isso, nosso dever divulgar e celebrar a notítica. Com uma das canções nunca editadas: Snowball.

The Naked Gun: quem salva a comédia?

Liam Neeson numa sessão de arriscada fisioterapia...

Há mais de três décadas, The Naked Gun foi uma série de filmes apostados em brincar com as regras de um certo cinema policial. O novo The Naked Gun: Aonde É que Pára a Polícia? tenta recuperar o seu humor, mas nem mesmo Liam Neeson consegue salvar a situação — este texto foi publicado no Diário de Notícias (31 julho).

A partir de hoje [31 julho] nas salas portuguesas, The Naked Gun: Aonde é que Pára a Polícia? tem na sua campanha um curioso cartaz em que Liam Neeson mostra o seu distintivo policial, “apoiando-se” na moldura da própria imagem numa pose de inusitada espargata de bailarino. A legenda prolonga o sarcasmo: “o alcance da lei nunca se esticou até tão longe...”
Em boa verdade, a imagem não pertence ao filme. Isto porque o humor que esta realização de Akiva Schaffer tenta recuperar e, de alguma maneira, reinventar não é especificamente burlesco. O que aqui mais conta não são as transfigurações mais ou menos ginasticadas (burlescas, precisamente) dos corpos, mas sim as componentes absurdas dos diálogos e também, logo a abrir, as desconcertantes palavras do discurso em off do protagonista, o tenente Frank Drebin Jr. — essa voz apresenta-se, aliás, como uma caricatura dos narradores da grande tradição do filme “noir”.
O novo Naked Gun é o nº 4 de uma das mais atípicas “franchises” geradas por Hollywood ao longo das últimas décadas. Concebido por um trio de criadores — Jim Abrahams e os irmãos David e Jerry Zucker —, vale a pena recordar que o primeiro título, Aonde É que Pára a Polícia? (agora recuperado como subtítulo português) surgiu em 1988 [poster], numa época em que a “grande aventura” (Indiana Jones & etc.) era ainda a matriz dominante das produções mais rentáveis. Aí ficámos a conhecer as atribulações do tenente Frank Drebin, interpretado, com apoteótica vocação para ser distraído, pelo veterano Leslie Nielsen.
Sempre a habitar um mundo de pernas para o ar (decididamente, a metáfora das pernas adequa-se a este universo...), Drebin regressou em 1991 e 1994 com dois títulos ainda mais absurdos. Ou seja: primeiro, Aonde É que Pára a Polícia? Parte 2 ½: O Aroma do Medo; depois, Aonde É que Pára a Polícia 33 1/3. Nielsen faleceu em 2010, contava 84 anos, e o assunto parecia encerrado. De facto, este retorno de Naked Gun, além de francamente banal, parece decorrer menos de um genuíno conceito de recriação ou reinvenção, ilustrando apenas a falta de visão de alguns executivos dos grandes estúdios (Paramount, neste caso) que tendem a identificar a ideia de sequela como princípio “obrigatório” de qualquer plano de produção.
Três décadas passadas, a escolha de Liam Neeson para interpretar o filho do primeiro Drebin — há uma cena com um retrato da personagem do pai para situar as memórias da própria “franchise” — tem tanto de bizarro como terá tido a estreia de Nielsen no filme de 1988 (ele que, tanto em cinema como em televisão, tinha sido quase sempre um competente secundário em registos predominantemente dramáticos). Quanto a Neeson, ultimamente dedicado a policiais mais ou menos estereotipados, convém não esquecer que, em momento fulcral da sua carreira, obteve uma nomeação para o Oscar de melhor actor pelo papel de Oskar Schindler em A Lista de Schindler (1993), de Steven Spielberg.

Humor & nostalgia

Na companhia de Pamela Anderson, também ela marcada pela frágil glória da série Baywatch/Marés Vivas (1989-2001), Neeson compõe, assim, um investigador igualmente desastrado que, sempre com a máxima inocência, debita frases de surpreendente elaboração “intelectual” contendo sugestões sexuais mais ou menos obscenas... Há em tudo isto um esforço para reencontrar as raízes de um humor tão primitivo quanto contagiante, mas a nostalgia não basta para salvar a comédia (este género de comédia, entenda-se) da sua própria decomposição temática, artística e, no fundo, industrial.
Fica, aliás, a ideia de que o melhor dos filmes Naked Gun está ligado a uma tradição, não apenas cinematográfica, mas em grande parte televisiva. Penso, em particular no humor surreal da magnífica série Get Smart/Olho Vivo (1965-1970), criada pela dupla Mel Brooks/Buck Henry [video: genério de abertura]. Outros tempos, sem dúvida.